Poupem-me a
definições de merda sobre ser feliz. Quantas vezes lhe pedi que não fosse
humana. Falei para o ar. Disse-lhe tantas vezes que era diferente e só depois
percebi que não era sentir de maneira diferente o que ela sabia fazer, ela não
sentia simplesmente. Como é que podia acompanhar isso? As nuvens na cabeça
dela. A chuva que caia sobre mim tantas vezes. Nunca consegui decifrar os olhos
frios com que ela me olhava e não sei mais se a conheci assim ou não. Se fui eu
que me enganei, porque de qualquer maneira não poderia ser ela a estar errada.
Eu acho mesmo que era qualquer coisa de mágico que me puxava a querer decifrar
o porquê de ela ser assim. Essa merda de sofrer como se não houvesse mais
oportunidades para levar as coisas, de não haver mundo para lá das vinte ruas
do centro da cidade dela. Enganou-me bem porque ela sempre soube ver o mundo e
sabia bem que não ia ficar ali para sempre. Não estava satisfeita com nada que
tivesse, nunca. E nunca sofreu com isso. Ela brincava comigo enquanto não se
lembrou de brincar com ela mesma. Gostava tanto de jogos que um dia lembrou-se
que a perder ou ganhar, se fosse ela a única a dar cartas, ficava sempre por
cima. Mas a porra da felicidade dela estava em não sentir nada. Não sentir
nada. Como é que alguém pode ter passado por tanto que seja tão pouco. Sabes o
que era ser feliz? Era deixa-la. Sempre odiei o olhar dela, vazio e negro, e as
mãos que mexiam sempre em tudo. Ela tinha tanto medo de tocar seja no que for
que só tocava na minha alma. Mas isso não são sentimentos, são sensações e nem
isso ela percebia. Era tão fria que pensava em tudo o que ia dizer, mas não.
Todos achavam que ela era só louca e dizia o que lhe apetecia, quando lhe
apetecia. Mas ela só queria ver o mundo a arder. Os olhos dela ficavam
brilhantes por saber que ninguém percebia o que ela estava afinal a fazer à própria
vida e se quisessem emocioná-la finalmente tinham que entender que entendê-la
não tinha definições ou palavras. E como é que vais dizer a alguém que sabia
usa-las tão bem que também podemos ser livres. Egoísta. Achava o mundo um lugar
tão maravilhoso que não o queria só para ela e como é que crias liberdade sem
barreiras? Não crias. Todos os dias com uma utopia nova na cabeça, tu não
podias nunca entender o que ela queria para ela mesma. E não fazia promessas
por causa disso. Às vezes acordava com muita força, outras vezes só queria
dormir mais e esquecer que tinha nascido assim, incompreensivelmente tão básica
que se poupava a convenções sociais de relações, amigos e família. E nisso
sempre foi honesta em não prometer que conseguisse levar-me com ela. Era isso
que mais me assustava nela, a frontalidade com que admitia não amar ninguém
porque amava toda a gente. Ela achava toda a gente muito bonita. E será que ela
não via que não pode ser assim? Às vezes até a mim me deixava na dúvida, se era
eu que nunca abri os olhos ou se era ela que lentamente ia perdendo o encanto
do mundo. Sim, porque vais explicar-me como é que podes ver tudo tão directo e
ainda achar que tudo é fantástico? E todas estas dúvidas que ela me enfiou na
cabeça, cumprindo assim o objectivo de me levar a pensar o que ela quisesse, já
não sei se são minhas ou de alguém que a ensinou. Mas tu não ensinas alguém que
só se ouve a si e à realidade. E no meio dessa realidade, tinha todos os sonhos
do mundo. Todos. Queria ser tanto, que nunca era nada, começava tudo e não
acabava. Ela nunca acabava. Sempre que tentava finalmente ficar em algum lado,
arranjava maneira de fugir. E ela tinha essa mesma certeza que tudo era uma
fuga. Mas se queres tanto não ser livre, para que foges, perguntei-lhe tantas
vezes. Perguntei-me tantas vezes. Porque naquela mente eram tudo letras,
conjunções e teorias. Inclusive essa de que para seres nunca vais ter
definição, trata-se só e apenas de não o seres. Tens mesmo que entender que ela
era eu.
Temos tanto em nós que preferíamos que fosse de uma outra pessoa...
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