"Já nasceste cansada"


Não tenho diário possível para a minha relação com os outros. Não tenho papel que me chegue para dissertar acerca do poder dos outros em mim. A minha independência é uma máscara tão grande que às tantas até me ofende que os outros vejam alguma força em mim. Eu sempre tive este propósito muito vulgar de querer mudar a vida dos outros. Gosto de ouvir e embora as minhas criticas pareçam vazias, são cheias de detalhes que não me cabem nos olhos. São cheias de pormenores que observei e me saem pela boca à velocidade suficiente para me esquecer que nem todos estão dispostos a ouvir. Os outros esquecem-se dos outros. E no entanto nem sei se os outros se esqueceram foi deles mesmos. Eu sofro deste mal de achar que não sou ninguém senão um bocadinho de todos e do mundo inteiro. Conferem-me tantos dados só meus, dão-me adjectivos à personalidade como se eu fosse muito eu. Dão-me factos de uma vida difícil e metem-me no papel de vilã porque tenho razões de sobra para julgar a vida e eu, eu muito simplesmente, acho que não tenho nada. Eu nunca senti dor nos problemas da vida e simultaneamente nunca esqueci nada do que me aconteceu. Estou sempre a esperar a onda que virará a minha vida do avesso e tenho medo de me perder no mar calmo que não leva a lado nenhum. O meu coração não é conciso a sentir e a minha mente é mais próxima de uma tempestade. Porque eu choro pelo sofrimento dos outros, eu questiono-me como é que os outros aguentam, eu apodero-me do vício que os outros têm, sorrio do gosto dos outros e a minha felicidade não depende de mim, mas perco-me em mim e tomo-me de certa em tudo, quero saber tudo e tomo tudo como meu. Eu não sofro porque relativizo a dor e acabo por me magoar quando a dor chega na televisão, na música, no cinema. É estranho escrever alto como é que alguém está assim sozinho. Como eu acho que estou perdida em mim. Como eu quero sair daqui. Eu não tenho lugar, eu não gosto de cidades, eu não gosto de sítios onde possa ficar muito tempo, eu não tenho uma boa relação com o tempo. O tempo leva as pessoas e quando não leva, eu vou à procura de horas no relógio que saibam melhor. Eu amo pessoas. Eu queria conhecer toda a gente no mundo, porque se eu pudesse tocar todos, ninguém me tocaria. Eu não amo ninguém. Toda a gente me encanta e toda a gente me apaixona quando falam com paixão. As pessoas cheias de loucura, cheias de sede, cheias de tudo na cabeça, apaixonam-me, e é difícil quando só gostas de loucos porque não encontras remédios, só encontras perguntas. Eu perco-me na normalidade, na falta de excitação, na falta de gosto de ver excitação nas coisas simples. Eu perco-me nos dias iguais, nas velhas amizades, nos grandes gestos, nas histórias tão boas de contar. Canso-me. E eu estou muito cansada. Há muitos dias que estou. Eu preciso muito proximamente de ficar sozinha no mundo, porque se eu sou os outros, talvez se eu não for ninguém, possa finalmente ser eu. Outra vez. E mais uma vez. E outras tantas. Cansada. Mesmo quando foi um amigo que me disse: "a nossa mutualidade individual é criada socialmente". 

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