Relíquia


Há sentimentos que são relíquias, essas que dizem ser no dicionário coisas preciosas, raras e antigas, sendo algo que resta de algo que deixou de existir. Há pessoas que são altares, à volta delas nascem catedrais e para elas vão peregrinações. Há pessoas que são casas, onde passam pormenores de geração em geração, são o sumo de agora com as laranjas da avó. Há pessoas que são caminhos, são as caixas de transporte de segredos e toques alheios. Há ainda aqueles que são promessas, aceitam de bom grado o fado de te que receber e os outros que são os fios de ouro quebrados, as peças perdidas, os vestígios daquilo que foram. Não sei o que sou. Todas as coisas raras sempre me agradaram, mas a preciosidade não parte das coisas, parte de nós que damos valor, aplicamos expectativas e eu já vi coisas preciosas em quase todos os lugares. Sempre me mostrei encantada pela simplicidade das formas da natureza e das fórmulas de cabeça. Sempre me vi antiqua, presa a ambição de ter realizado qualquer coisa a caminho de um bem maior. Eu já quis mudar o mundo. Eu já quis tocar as pessoas, que elas me usassem ao peito com orgulho como quem guarda um amor velho e longo. Já quis ser eu mesma a relíquia dos outros, mas se vires bem o meu mal - e não tenho a certeza sobre o mal da maldade disto - foi nunca ter querido guardar peças de ninguém. Esqueço-me das pessoas como quem se esquece do anel no fundo da caixa. Gosto de aves. Essas mesmo. Mas nunca entendi a preciosidade de guardar lembranças, a brevidade do meu pensamento vai-se a cada coisa nova e eu olho para tudo quase sempre com olhos de ver. Adoro sumo de laranja e não me importo do amor dos avós, mas não aceito fados e não recuso desafios. Talvez não seja nem ouro, prata. Talvez não seja nada precioso, talvez o meu valor esteja no passar pelas pessoas mas não tenho a certeza até que ponto embelezo. Bem, confesso eu não embelezo. É mais provável que seja pesada e exposta de forma imponente. Sempre fui boa a sair da vida das pessoas, sempre gostei de aparecer tanto como gosto de desaparecer. Do nada. Quando toda a gente diz que não esperava ou quando toda a gente acha que foi mais uma reviravolta. Mas eu tenho constância, não me lembro de ter mudado, não me lembro de ter perdido o rancor da jóia que se perde. Os meus ódios, as pessoas que me ostentaram, depuram-se em mim com convicções vincadas. Sou peregrina do caminho, sou visitante das catedrais, mas não faço promessas se não a mim mesma. Acabo por aceitar o meu fado mesmo que não goste muito embora queiram. Contradigo-me. É verdade e é por isso que tenho um bocado de vestígio e de peça deixada por ficar, por acabar. Há sentimentos que são relíquias e eu por este andar, corro o sério risco de morrer na falsidade do capelão, por entre as sombras a ver as maravilhas do mundo e a saber mais delas que os olhares das máquinas fotográficas. 

3 comentários:

  1. Não te considero relíquia ou capela, não sou ninguém para te categorizar. Mas viajei. Hoje, ao ler-te, viajei. Não serás nunca um meio, talvez sejas caminho ou porta que se abre e nos deixa descobrirmo-nos melhor. É, és isso.

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  2. r: obrigada princesa :) é um sitio que realmente gosto muito *

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