Escorpião


Liguei-lhe e disse que tínhamos de ter uma conversa séria. Claro que ele imaginou todas as coisas de mal que fez e provavelmente ficou no zero porque não tinha feito nada. Perguntou-me afinal o que queria eu. Bem, nem eu sei o que queria ou que quero ao certo, mas não queria certamente que ele fosse igual a mim e era sobre isso que eu tinha de lhe falar. Desliguei a chamada e corri para a casa dele. 

Enquanto esperava por ela, imaginei tudo o que poderia ter feito ou não, e quando dei por mim percebi que esta era umas das raríssimas vezes em que ela não tinha errado em nada na minha vida. Mas continuava cheio de medo porque quando ela dizia que tinha algo para falar, - e não que ela precisasse de avisar, porque volta e meia ela dizia o que lhe apetecia com demasiada exactidão para ser espontâneo -, saiam dela verdades inabaláveis e perguntas difíceis de responder. Esperei, colado no sofá, que ela chegasse, enquanto via qualquer coisa na televisão sobre casais. Temia sempre por estas esperas, às vezes ela chegava e dizia que nem era nada relevante, mas eu temia sempre porque ao fim ao cabo era sempre qualquer coisa muito importante para mim. 

Gostava que ele soubesse que não dormi a noite toda a pensar no que lhe dizer ou, então, o porque das atitudes dele. Preocupava-me com ele e nunca era demais. Não podia guardar mais para mim todas as perguntas para as quais não encontrava resposta e não fazia ideia do que lhe podia faltar porque achava que não lhe faltava nada na vida. Era isso que tinha de descobrir, uma razão. Demoro mais um bocado por causa disso, estou a pensar como não o magoar.

Nunca mais chega. Disse que vinha já, que esperasse por ela e ainda não chegou porquê? Não terá acontecido nada, mas pronto ela atrasasse sempre, nem sei porque parei o meu dia a espera dela. Já devia conhecê-la. Ou não, porque ela surpreendia-me sempre. O programa na televisão está cada vez mais estúpido. 

Cheguei e vi-o sentado no sofá a olhar para a televisão. Com o ar mais triste do mundo e do qual ele nem se apercebia. Estou cada vez mais inquietada, nem sei onde ir, onde pousar a mala, o que fazer afinal. "Ele não vê como está?", só consigo pensar nisso. 

Chegou. Está com aquele olhar de confusão, com aquele desajeito no corpo. Pergunto-lhe se quer ajuda para guardar as coisas. Mas sai-me logo pela boca "O que foi?". Assim bruto e em protecção de mim mesmo. Vejo o olhar dela e percebo logo que não lhe fiz nada, mas que aquilo que eu fiz é pior que isso.

Nem me lembro do que disse mas fui directa ao assunto, não fui suave como queria mas estava que uma voz tão tremida que a mensagem de que era suposto ser uma conversa calma foi passada. Disse-lhe. Disse-lhe de uma vez. Disse-lhe que a vida dele estava uma merda, que ele se perdeu das coisas dele e dele mesmo, que estava a ficar diferente até fisicamente, que o vi na rua e não o reconheci e que isso era desperdício porque quem não o conhecia só me dizia como ele era interessante. Merda. Ele continua interessante, mas está a desfazer-se. Disse-lhe que tinha que se levantar, fazer alguma coisa para mudar aquilo e afinal o que lhe doía tanto que o impedia de saber, perguntei, perguntei muitas vezes para lhe arrancar a resposta. Disse-lhe que tomei ainda mais atenção quando as pessoas que gostavam dele vieram dizer-me que elas próprias qualquer dia lhe diziam a verdade e eu tive que me antecipar, era a  minha obrigação. E a minha obrigação de estar ao lado dele não estava a ser cumprida porque em todos os dias ele se afundava mais e eu já estive nesse lugar e não queria isso para ele. Chorei para lhe dizer isso mesmo, que eu não aguentava que ele me seguisse nesse aspecto. Tentei dar-lhe conselhos mas acima de tudo queria que ele se libertasse e falasse. 

À primeira palavra dela chorei, chorei muito e não lhe consegui olhar de frente até ela se aproximar mesmo da minha cara para me dizer aquilo tudo. Em todas as frases algo me tocava, algo mexia dentro de mim, algo pedia para sair. Senti-me a pegar fogo, tossia. Por fim, confessei o meu grave problema e contei-lhe quando começou e como eu tento resolver-me sozinho. Já podia ter-lhe dito há mais tempo mas afastei-me dela como sempre. Contei-lhe e ela parou. 

Fiquei estupefacta com as palavras dele. Afinal aquilo era tudo uma questão de falta de amor e ele contou-me tudo o que tinha feito, os erros todos, os caminhos sinuosos pelos quais andou por causa desse buraco no peito. Ele dizia que não ia mudar tudo de um dia para o outro e eu respondi que até podia durar um ano mas que tinha de mudar. Eu sei que é sofrer disso e merda chorei outra vez, feita fraca, porque mais do que para mim, eu queria que ele fosse feliz. Eu não podia morrer ser o ver feliz.

Chorei e chorei. Já não consegui dizer mais nada a não ser que há muito tempo que venho a aperceber-me das coisas e tento sair daqui sem sucesso e com razão, faltava-me ela para me tirar disto. Faltava-me o maior amor do mundo para colmatar estas pequenas faltas de auto-estima. Faltava-me o amor dela. Tinha mais algumas coisas para lhe dizer, mas no fim só disse a vontade que era minha e dela: ia mudar. Faltava-me amor próprio até ali. 

Espero que mude. Espero que seja feliz. Mas pelo menos hoje acabo o dia mais leve por saber que finalmente ele falou comigo. E estarei atenta para a eventualidade de ele falhar, não prometo ser calma, mas vou estar lá. 

Vou mudar. E nunca pensei que fosse ela a salvar-me. Ela. Mas sempre foi ela a única pessoa que me soube amar, seja agora nos dias maus como nos dias bons e nestes primeiros então sempre me amou infinitamente. 

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