Primeiro Prémio #5

 
« (...). Viajar num barquinho de papel ou numa noz parece-vos estranho? Pois ficar cego e continuar a viver e amar, a mim, parece-me muito mais. Não ver a água, não ver as árvores, os animais parece-vos pouco quando podeis ver sem olhar, mas para quem não vê deveras, parece-lhe tudo. Não ver o amor da vossa vida por um mês ou um ano, parece-vos muito, mas quem não vê deveras só o facto de saber que ele existe, está vivo e nos vê, já nos parece uma enormidade. Olhai bem para o relógio que trazeis, vocês podem.
  A nossa viagem tinha realmente demorado apenas cerca de quarenta ou cinquenta minutos, a questão é que não era o Rio Douro ou Tejo ou Odelouca que estavam ali, eram os caminhos da minha vida que ali se representavam. Doces e calmos, sinuosos e ácidos, fugazes e sedutores. Com paragens, com recuos, com margens, com curvas, com rectas, com tudo o que uma decisão implica. Com a loucura do excesso de Vinho do Porto mas com a classe de um passeio pelas ruas que Pessoa pisou.
  Estava morto, era um facto, e tudo aquilo não passou de um filme no qual eu me imaginei como protagonista. É assim que vejo a minha vida de fora: um filme com um mau argumento, desenquadrado daquilo que um bom actor tem para dar. De resto, conheci uma pessoa que me acompanhou nesses rios, co-protagonizando aquelas águas e, por isso, valeu a pena viver. Talvez seja isso. Talvez o significado de tudo esteja apenas num momento ou numa pessoa, ou então, esteja no conjunto de todas as nossas opções.
  E despertei: “Percebes agora tudo o que não respondi? Percebes que aqui não precisas de sapatos? Percebes que aqui não és cego e que vês melhor que ninguém?”. Abri os olhos e percebi que já não era cego, estava morto apenas, só isso.
  Só? Sim, só. Tenho todas as soluções do Universo e a paixão arrebatadora de uma obra literária. Aqui, do Céu, vê-se tudo muito melhor, não há nuvens ao contrário do que vos parece ai debaixo, porque a mim também me parecia.
  Cegos os que vivem na Terra. »

Fim 

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